~#APRECIADORES DO ABISMO#~

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

~#☥ A REVELAÇÃO ☥#~

Durante o sonho, encontrara-me perdido num abandonado cemitério situado numa floresta onde o nevoeiro era imenso e parecia indicar a hora do crepúsculo nascente. Ali, senti uma súbita tontura que me deu a sensação de estar a ser observado, e de facto estava. Por detrás das árvores espreitavam enormes homens com cabeça de chacal que, assim que eu os olhava, rapidamente se voltavam a esconder. As minhas pernas tremiam e só conseguia prever o pior. No entanto, com uma duvidosa coragem e olhando em todas as direcções, perguntei – Quem são vocês? Não obtive resposta, mas vi os homens chacal saírem detrás das árvores e formarem um círculo em redor do cemitério. O silêncio era tenebroso e, antes que eu pudesse dizer algo mais, os olhos deles começaram a brilhar em chamas e do chão do cemitério começaram a surgir linhas, também flamejantes, que formavam uma qualquer forma geométrica para mim desconhecida. Pelo ar, inúmeras aves voavam em sintonia com as formas traçadas no solo. Foi então que, como consequência desta formação, algumas das campas se abriram permitindo a iminente saída dos cadáveres. Para meu espanto, a única coisa que se ergueu de cada uma daquelas campas foi um enorme espelho. Os homens chacal, inexplicavelmente, haviam desaparecido, deixando-me sozinho com aquele grupo de espelhos que me olhava com a forma do meu olhar reflectido. Foi então que ela surgiu.
O meu corpo tremia ou, pelo menos, essa era a sensação que no sonho me era transmitida. Não era uma beldade idílica nem uma criatura horrenda, nada de romanesco, era simplesmente uma mulher banal que havia surgindo do nada. Era nova, esse era um facto facilmente perceptível. A sua voz não era assustadora nem melíflua. A poucos metros de distância, sem responder às questões que o meu espanto lançara, limitou-se a indicar uma série de passos que eu deveria tomar assim que acordasse pela manhã, e foi aqui que percebi que estava a sonhar. Afirmou que a minha existência necessitava de uma revelação, algo que me iria ser mostrado, mas que para isso teria de ir ao seu encontro. Disse-me que no dia seguinte deveria dirigir-me a uma floresta, à qual chegaria instintivamente, e lá, com os olhos vendados, encontraria aquele velho cemitério onde me seria revelado o motivo do sonho. Não percebi completamente o conteúdo da mensagem, mas enquanto pensava nisso acabei por acordar em sobressalto.
Pela manhã, apesar de toda a incredulidade que os sonhos transmitem, decide dar ouvidos à minha loucura e deixei-me guiar pelas dúbias e misteriosas palavras. Deixei-me conduzir sem rumo e decidi parar o meu automóvel junto a uma floresta à minha escolha, sem que nada de sensação alguma me indicasse que era aquela.
Tal como me fora indicado, vendei os olhos antes de entrar na floresta. O odor seco do Outono lançou de imediato a sua essência e, como o espectro me havia revelado naquele sonho, deveria deixar-me guiar pelo meu instinto e pelos restantes sentidos. Os primeiros passos, a medo, foram acompanhados pelos latidos do meu velho cão, que corria desenfreado em meu redor. Segundos depois, percebi que ele correra para o interior daquela floresta, deixando-me sozinho na busca pelo decifrar da enigmática mensagem.
Continuei a caminhar, lentamente, para não cair ou chocar com alguma árvore, no rumo desorientado que me conduziria à prometida revelação. Senti então um súbito arrepio que me fez parar. Mantive a venda nos olhos e, mesmo sem conseguir ver, percebi a presença dos homens chacal a circularem pela floresta. Agora sim, estava com medo. Uma voz, que reconheci como sendo a da mulher do sonho, ordenou-me que tirasse a venda. Com os olhos descobertos pude confirmar que estava no cemitério do meu sonho e a mesma mulher encontrava-se à minha frente. O meu cão estava sentado junto dela, como se ela fosse a verdadeira dona dele.
- Foi consigo que sonhei? - perguntei reticente. Ela apenas perguntou se aquele cão era meu e disse que me mandara tirar a venda porque eu estava quase a tropeçar numa das campas. Perguntei-lhe o que estava ali a fazer, por que motivo andava sozinha por tão sinistra floresta. Ela respondeu que a sua casa ficava na floresta, pelo que conhecia demasiado bem aquele ambiente para poder ter medo do que quer que fosse.
Em seguida, vi que ali se encontravam vários espelhos, das mais diversas formas e feitios, alguns dos quais pendurados em árvores, alguns que pareciam ser novos e outros que já se encontravam quebrados ou simplesmente atacados pelo tempo. Então, ela soltou sorridente, em forma de questão:
- Sonho? Você anda a sonhar comigo? – e dizendo isto deixou transparecer uma suave gargalhada que me fez arrepiar e me impediu de falar. O meu cão veio ter comigo, como se a pergunta dela fosse a ordem que o faria regressar a mim. Acenando com o braço, a misteriosa mulher indicou-me que caminhasse por entre aquela tétrica exposição de espelhos. Sem saber muito bem como reagir, tentei demonstrar interesse pelo cenário, apesar de, na realidade, sentir desconfiança e medo.
- Já se viu ao espelho? De qual é que gostou mais? – perguntou ela. Apesar da ambiguidade da questão e de não perceber qual o interesse que isso teria, acabei por responder que era o enorme e ornamentado espelho que estava encostado à parede de um mausoléu. Ela corrigiu:
- Não quero saber qual o espelho de que gostou mais, mas sim, qual o reflexo que mais lhe agradou?
Fiquei intrigado, sem saber o que responder, pois o reflexo era eu, a minha imagem. Acabei por lhe dar esta mesma resposta, que o reflexo, fosse qual fosse o espelho, era sempre o mesmo, era sempre eu que estava em cada um dos espelhos. Ela, virando as costas para se ir misturar com a floresta, acrescentou:
- “Apesar das molduras, enfeites, dourados e podridão…o mesmo homem vê-se na luz e na escuridão…e quando do centro percebe o seu ser…aprende a perfeição da não-perfeição.”
Dizendo isto, desapareceu nas sombras que se acentuavam à sua passagem. Entretanto, o meu cão começou a entrar calmamente num caminho mais iluminado da floresta. Confuso, decidi segui-lo, pois se alguém me poderia ajudar a encontrar o caminho de volta era ele.
Enquanto caminhava, reflectia no que acabara de me acontecer, no sentido, se é que de facto existia, que o sonho e a realidade teriam. Talvez fosse tudo uma mística coincidência, uma ironia no tempo certo, …ou uma revelação a decifrar na melodia daquelas palavras.