Quando se soube da súbita morte de uma das pequenas gémeas, o choque foi tremendo. Eram duas crianças extremamente doces e adoráveis. Quando uma espantava alguém com a sua alegre candura, educação e inteligência, a outra, logo em seguida, parecia conseguir ultrapassar esse inultrapassável trato social. Assemelhavam-se a dois pequenos anjos que os céus enviaram para iluminar as pessoas da Vila.
Os desgostosos pais não queriam acreditar que uma das suas preciosas filhas tivesse desaparecido, e o desespero era horrível de ver e sentir. Quanto à irmã, ainda com uma certa inocência em relação ao sentido da morte, permanecia imóvel e silenciosa.
O funeral foi uma triste e chorosa reunião popular, pois todos quiseram deixar um último adeus àquele ser maravilhoso. O próprio dia, que começara por nascer com um sereno azul celestial, no momento da derradeira marcha cobriu-se com um agreste manto cinzento.
Ao chegarem a casa, os incontroláveis pais foram encontrar a jovem vizinha, que ficara a tomar conta da irmã sobrevivente, num estado de desenfreada loucura e medo. Ao serem confrontados com aquela recepção, os melindrados pais temeram que a sua desgraça ainda pudesse ser maior, que algo houvesse sucedido à sua filha viva. Mas longe estavam de poder imaginar o que realmente estava para vir. A jovem rapariga relatou que a menina pedira para ficar no quarto, com uma apatia que ela deduziu ser derivada do falecimento da irmã e de todo o ambiente fúnebre que a circundava. Foi então que, momentos depois, pequenas gargalhadas e risos começaram a ser ouvidos vindos do quarto. A jovem não estranhou, pois julgou ser a menina a brincar – o que, de facto, até era verdade. Um pouco depois, ouviu o que lhe pareceu ser a menina a conversar sozinha. Decidiu ir confirmar que tudo estava bem, se a pequena precisava de alguma coisa. Bateu e abriu suavemente a porta do quarto e, enquanto perguntava se estava tudo bem, foi petrificada pela imagem das duas irmãs a brincarem juntas. Perante aquela visão, apenas conseguiu fugir para a cozinha e lá ficou, com a porta devidamente fechada. Ainda pensou em sair para a rua e chamar alguém, mas para tal teria de passar pelo corredor que dava acesso ao quarto das meninas, e isso intimidava-a bastante.
Os pais, atónitos, acorreram de imediato ao quarto das filhas e, para seu espanto, puderam confirmar o que acabara de lhes ser narrado. As duas meninas brincavam alegremente, batendo com as palmas das mãos uma na outra e entoando uma das suas habituais cantigas. A mãe soltou um grito, e perante a reacção, a espectral menina olhou para os abismados espectadores e encostando o frágil dedo indicador aos lábios ordenou-lhes que fizessem silêncio. Em seguida, a porta do quarto fechou-se violentamente, deixando apenas as duas crianças no interior. Os pais e a vizinha ainda tentaram abrir a porta, mas era impossível. Entretanto, ouviam-se os alegres risos das crianças. A sobrevivente parecia não estar afectada com todo aquele cenário de fantástico e de terror.
Trataram então de chamar o padre que, incrédulo, prontamente acedeu ao desesperado apelo que lhe era feito. Já na casa, o padre não teve dificuldade em abrir a porta do quarto das meninas, mas a sua alma tremeu quando vislumbrou a pueril brincadeira. As meninas olhavam para ele e a defunta cumprimentou-o com um amistoso e inocente “olá”. O padre tirou um crucifixo do bolso e começou a ler passagens de um salmo secreto, ao mesmo tempo que remexia no sal que trouxera no bolso. Os pais e a vizinha observavam, em pânico, encobertos pelo fraco busto do padre. Não houve qualquer reacção ao aparato religioso, por parte do fantasma. A mãe chamou pelo nome das duas filhas, e ambas acederam ao chamamento, mas responderam que estavam a acabar de brincar. Quando o padre lançou água benta na direcção do espectro, apenas a menina viva se queixou, vociferando em direcção à mãe que o senhor padre estava a molhá-la. O religioso, ao perceber a ineficácia do seu ritual, e após tentar sem sucesso comunicar com a menina morta, optou por tentar resgatar a menina viva para fora do quarto. Foi então empurrado para fora daquela divisão por uma força invisível, que fechou também a porta com violência. Estavam as crianças novamente encerradas no seu quarto. A viva parecia familiarizada com a ocorrência e não transmitia qualquer sinal de medo.
Uma hora havia já passado desde que o padre fora expulso daquele quarto. Do interior, apenas se ouviam as vozes e os alegres risos da diversão. As tentativas para arrombar a porta foram todas em vão e o desespero não deixava antever um fim para a situação. Para os pais, aquelas eram as suas duas filhas, apesar de uma pertencer já ao mundo dos não-vivos, pelo que o repartido e sincero afecto continuava a existir. Seria aquele fantasma, realmente, a sua filha? Essa era a questão que mais os fazia temer pela menina viva. Entretanto, o padre telefonava aos seus superiores e amigos, em busca de conselhos e auxílio.
Após alguns minutos de tenebroso silêncio, a porta daquele quarto abriu-se e a gémea viva saiu, calmamente, com uma normalidade que espantou os presentes. A mãe, correu de imediato a abraçar a filha, enquanto o padre olhava de soslaio para o interior da divisão, na tentativa de decifrar o fantasma. Mas o quarto ficara vazio, sem sinal de qualquer anormalidade. Com a emoção a tomar conta dos seus espíritos, os pais perguntaram à menina o que se tinha passado, se ela estava bem e onde estava a irmã. A menina, sem qualquer revelação de abalo, afirmou apenas que tinha estado a brincar com a irmã, pois dois dias antes tinham combinado fazer o derradeiro jogo que decidiria quem era a melhor naquele jogo de cartas. Como ficara combinado e ambas queriam saber quem ganharia, a irmã viera fazer o jogo com ela.
A menina morta ganhara o jogo. Em seguida, despedira-se da irmã e fora-se embora.
Os anos foram passando, o episódio foi esquecido, ou melhor, não relembrado, e a pequena gémea sobrevivente foi-se transformando numa bela rapariga. Os seus longos cabelos loiros e o olhar cor de céu fulminavam de paixão qualquer homem que com ela se cruzasse. O seu jeito delicado era igualmente cativante. No entanto, apesar de toda a graciosidade que ela irradiava, uma certa expressão de mistério parecia ocultar-lhe algo de anormal. De facto, ela nunca esquecera a sua falecida irmã, e também esta nunca a esquecera, pois todos os anos, no dia em que comemoravam mais um aniversário, o espectro da defunta aparecia à irmã. A irmã, era agora uma mulher, o fantasma, mantinha a forma de criança. Mantinham o segredo bem guardado, pois ninguém iria perceber ou acreditar que as duas irmãs, uma vez por ano, ainda brincassem juntas. Ninguém sabe do que falavam, que confissões partilhavam ou brincadeiras tinham.
Certo dia, em que mais um aniversário do nascimento das gémeas se celebrava, a bonita jovem tentava apressar-se para chegar a casa o mais rápido possível, pois sabia que a sua irmã voltaria a visitá-la. Para tal, decidiu cruzar o jardim da cidade que, apesar de extenso, encurtava bastante o caminho que ela teria de percorrer até à estação de comboios. Era um jardim seguro e o dia, apesar de perto do fim, ainda mostrava uns raios luminosos. Com passos rápidos e entusiasmada por voltar a rever a irmã, a desatenta rapariga não percebeu a presença, numa das mesas de madeira do jardim, de três homens, de aspecto sinistro, que jogavam às cartas, bebiam e lançaram provocações à sua passagem. Ela, quando finalmente percebeu que as obscenidades lhe eram dirigidas, decidiu ignorá-las e seguiu o seu caminho. Mas aqueles homens não ficaram satisfeitos com as palavras e começaram a persegui-la e a rodeá-la. O medo tomou conta da angelical figura, como um cordeiro que teme a inevitabilidade do sacrifício. Um dos homens começou a segurá-la, enquanto outro se aproximava. Ninguém passava por perto ou, se passou, não se quis intrometer e ser também vítima daqueles homens.
Subitamente, o terceiro homem chamou a atenção dos restantes para uma pequena menina loira que aparecera junto deles. Tentaram afastá-la, com rudes palavras e bruscas ameaças. A menina gritou então com uma voz demoníaca: -TAMBÉM QUERO BRINCAR! O maléfico trio sentiu um petrificante arrepio e foram obrigados a soltar a jovem. O vento começou a soprar fortemente, levantando pó e folhas caídas. O céu escureceu e as sombras tomaram conta daquele local. Dos arbustos circundantes surgiu uma matilha de enormes cães cobertos de sangue, pelo que se pode caracterizá-los como tendo cor de sangue, que saltaram raivosamente sobre os homens em pânico. Os dentes afiados dos estranhos animais começaram a rasgar fervorosamente a carne humano e o sangue jorrava em todas as direcções. Sarcásticos risinhos de meninas eram ouvidos enquanto decorria o macabro espectáculo. A pequena menina correu para a irmã e, abraçando-a, contemplou a carnificina com um impávido olhar. A jovem rapariga, ainda em estado de choque, apertou a irmã contra si e beijou-lhe a testa.
Tudo aconteceu em poucos segundos, ao que sucedeu um tenebroso silêncio e todo o aparato desapareceu deixando-as às duas perante os cadáveres dos atacantes. O importante é que estavam novamente juntas para celebrar mais um aniversário.
Com as cartas ensanguentadas, as duas irmãs fizeram mais um jogo, rodeadas pelos corpos desfigurados dos três atacantes. No final, a menina, exclamou com entusiasmo e sorrindo: - Voltei a ganhar!
Emanuel R. Marques