No começo fui encantado pelas mesmas virtudes ou dons. As palavras. E talvez não há ninguém melhor que ela, para proferi-las. Seja falada ou escrita, embora sua naturalidade com as letras jogadas em meios literários seja muito mais destacada. Teus olhos chegaram até mim com um brilho de novidade. Com ar de encanto e descoberta. A voz trouxe um tom de maturidade. Em pouco tempo estava em teu colo.
As tardes de caminhadas no parque nos inspiravam a desenhar os mais belos poemas. Enquanto que nas manhãs de passeios de barco, ao som das cores do mar, rabiscávamos o pudor, sobrepondo-o com as mais devassas fantasias sexuais. Mas em pouco tempo as coisas foram tomando outra forma. Aquela mulher quase perfeita mostrou teu corpo frio. Tuas mãos tocavam minha nuca com a brancura do pólo norte. Mantinha-se distante por vezes, a ponto de não me ver à sua frente. Meu sorriso ardia. As roupas se soltavam ao vento. A via nua de preconceitos, mas também de culpas. Mas eu não era visto por ela da mesma forma. Em alguns momentos, seu olhar sobre mim era de estudo. Teses.
Então aconteceu.
Não sei como, mas um dia acordei preso a certas correntes. Meu corpo jogado em um calabouço de estranhas sensações. De um lado o característico cenário de um lugar como esses: podridão, escuridão e umidade. O ar pesado da tortura do tempo invadia minhas narinas, enchendo meus pulmões de bactérias. Atrás de mim, um ambiente puro. Paredes pintadas de um verde claro quase balsâmico. Uma brisa fresca batendo em meus cabelos e costas, trazendo um pouco de esperança. Se movesse minha cabeça levemente para a direita, era capaz de escutar Brahms. Sem muita precisão, poderia dizer que era um concerto para violinos. Voltando-me novamente para frente, a composição era permeada pelo som de gotas e ratos.
Fui julgado. Ou talvez justamente o contrário. Não tive veredicto. Mas ainda assim era estudado. Observado.
Monstro.
Em poucos dias depois de estar nesse lugar, vi meus pés sendo cobertos por escamas. As unhas enegrecendo e tornando-se afiadas. O mesmo acontecia com minhas pernas, aos poucos. Minhas coxas ainda não tinham sido tomadas por tal revestimento. Ainda sentia frio em meu corpo nu. Certa noite, minha garganta começou a coçar. Tentei pigarrear. Tentei ouvir minha voz e apenas sons guturais brotaram de dentro de mim. Senti meus lábios enrijecerem. Me veio em mente um de meus contos, onde um homem lagarto era um terrível raptor de mulheres, afim de que elas lhe servissem como parideiras de sua prole. Mas ali eu era o prisioneiro. Na manhã seguinte, confirmei quase sem espanto, a minha condição. O sol iluminava parte de meu tétrico lar provisório e abaixo de mim (comentei que estava pendurado com as mãos presas?), o reflexo na poça de urina me mostrou no que me transformei.
Em algumas poucas horas no dia, sentia sua presença atrás de mim. Como se ela mesma tocasse os violinos. Todos ao mesmo tempo. Remédio para minhas dores. Lavagem cerebral para que não me revoltasse.
“Não sou um monstro...” – eu dizia com certa carga de amargura na voz.
“Nunca disse que era” – a resposta chegava em voz doce, carregada de dúvidas.
Fim de algumas semanas.
Senti meu corpo mais forte. Estava tomado por completo por essa criatura que me veste. Foi quando ela ficou diante de mim, na parte suja. Pegou uma enorme chave enferrujada e abriu os cadeados.
“Você está livre. Não preciso mais observá-lo. Não vejo porque ficar mais com você.”
“Agora que me tornei... isso?”
O silêncio calou os violinos. Exterminou os ratos e tapou as goteiras.
Nosso olhar se cruzou, entornando lágrimas e trevas. “Eu não era um monstro”, eu repetia baixinho. “Nunca disse que era” – vinha novamente a mesma resposta automática. E simplesmente, como se desliga um aparelho eletrônico, ela virou as costas, pediu desculpas e disse adeus.
Meus braços ainda formigavam. Senti o gelado líquido que me tomava as veias. Minha língua, agora bi-partida, sentia no ar o perfume de sua inocente maldade. Antes que a porta se fechasse, ela olhou para trás. Sorriu suas lágrimas. No final do corredor, pude ver através da fresta da porta, outro homem. Ele carregava arrependimentos. Levava palavras fúteis e decoradas. Era seu retorno.
Pedi um último olhar.
“Eu não sou um monstro... Abrace-me!”
Violinos. A brisa. Minhas garras.
Bebi seu sangue até a última gota.
Sempre fui um psicopata das letras.
(M.D Amado)
FANTÁSTICO COMO TODOS OS CONTOS CRIADOS POR ESSE INCRIVEL FAZEDOR DE PESADÊLOS.
ResponderExcluirR.RAVEN
Obrigado querida... Exageraaaaada! rsrsrs. Adorei a imagem!
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