~#APRECIADORES DO ABISMO#~

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

~# ☥ A SUICIDA ☥ #~


Essa história aconteceu há muito tempo. E confesso, foi uma das experiências mais divertidas que já tive.
De início, pode parecer triste ao leitor a história aqui relatada, mas você verá que aqui no bosque maldito nossos valores estão acima da compreensão de muitos humanos.

A corda já estava amarrada e bem firme em seu pescoço. Aquela estranha menina, que aparentava ter uns dezoito anos, amarrou uma corda na árvore e sentou-se num galho, chorando, com um olhar vazio e sem esperança por trás de seus lisos cabelos negros desgrenhados.
O nó que ela deu em seu pescoço estava bem apertado. Ela estava disposta mesmo a se matar.
E levantando-se lentamente, ela aos poucos preparava-se para pular.
E quando já estava com os pés firmes sobre o galho, pronta para se jogar, nós surgimos... Duendes e gnomos aproximavam-se da árvore, observando a suicida bem de perto.
As fadas vieram voando e cercaram o local, espalhando-se todas sentadas para assistir a cena. E todos chegavam aos poucos: os sátiros, as bruxas, e até os trolls que os gnomos odiavam.

Mas a suicida não podia ver nenhum de nós. Seus olhos estavam fechados para o mundo mágico do bosque, tamanha era a negatividade que ela trazia no coração.
Eu me lembro quando fui chamado para ver a cena. Faunos vindos de todas as partes, correndo como loucos, espalhavam a notícia por todo o bosque, e vieram bater em minha porta, dizendo que todos nós precisávamos ir ao local.

Eu fui com os faunos, e fiquei ali, num canto escondido, presenciando a cena.
As bruxas prepararam rapidamente o ritual.
Elas ergueram a fumaça mágica entre as árvores, de onde podíamos ver tudo o que se passava na mente da suicida. E esse ritual era possível porque muitos seres mágicos estavam ali presentes, inclusive os faunos, que invocavam as imagens com o som de suas flautas.
— Frederic! Toque a flauta! – ordenava-me a bruxa Selene, já em êxtase.
E eu atendi sua ordem com certa má vontade, mas atendi, afinal era Selene quem ordenava, a bruxa mais poderosa do bosque.
As imagens então começaram a surgir entre as árvores, e Selene, mesmo de olhos fechados, já sentia tudo e discursava com vigor e empolgação tudo o que se passava.

Era um ritual, sem dúvida. E a suicida nem percebia que estávamos todos ali, preparando aquele ritual para ela, e esperando que ela pulasse logo.
Os Sátiros riam com os Trolls, que gritavam: “Se joga logo filha da puta!”.
E Selene prosseguiu com seu discurso furioso, um discurso que todos nós podíamos ver em imagens na fumaça mágica entre as árvores.
Não lembro de todo o discurso-ritual na íntegra, mas as imagens nunca vão me sair da cabeça. E era algo que nas palavras de Selene saía mais ou menos assim:
“As cidades estão se corrompendo.
Pais surram e estupram suas filhas. A corrupção e a injustiça reina na sociedade. Os homens mergulham no sangue de seus irmãos, a igreja está sendo destruída.
Povos morrem de fome. Estão morrendo por moléstias e crimes. Cidades estão sendo queimadas, o pai se revolta contra o filho. O irmão contra o irmão, a mãe contra a filha.
Tudo isso nos faz morrer!” Todos entraram em êxtase quando Selene gritou essa última frase.
A canção das flautas dos faunos contribuía ainda mais para toda aquela empolgação.
Uma festa, em que cada frase de Selene aparecia com nitidez em imagens na fumaça mágica!
E Selene continuou: “Famílias estão sendo divididas, a fidelidade e o amor estão morrendo.
Há prostituição nos lugares sagrados. Noite e morte contínuas sobre os humanos!
TUDO ISSO NOS FAZ MORRER!”.
A voz de Selene era alta e macabra, sombria, bizarra. Poderosa!
Logo depois, veio o silêncio. A suicida estava prestes a se jogar do alto da árvore.
A tristeza estampada em sua face era imensa. Sua roupa e seu corpo maltratado mostravam que ela chegou ali depois de muita provação.
Ninguém dizia mais uma palavra. Selene ficou em silêncio, os faunos pararam de tocar suas flautas. As imagens sumiram, o bosque inteiro ficou em silêncio. Ela pulou. Ouvi um não estridente e prolongado vindo de Selene.
Era o desfecho do Ritual.

— SUICIDAAA! – Chamava Selene pela estranha garota, em seu ritual de invocação.
E lá estava a garota, pendurada pelo pescoço.
Morta...
Morta? Desamarramos a suicida e a deixamos no chão. Agora podíamos tocá-la, pois sua negatividade abandonou seu coração e não mais nos repelia. Preparamos então sua transformação.
Todos pularam sobre a suicida, prontos para transformá-la.
Quando nos afastamos, deixamos a garota, que já andava com certa dificuldade.
Ela acordava aos poucos, e quando olhou ao redor e viu todos nós diante dela, assustou-se e teve medo.

Selene aproximou-se da suicida e disse:
— Tudo isso nos faz morrer... e ouvimos sua dor quando você gritava em seus pensamentos: ODEIO MINHA VIDA! – Gritou apontando para a nova imagem que se formava na fumaça mágica entre as árvores.

Era a imagem da garota, como num espelho, dessa vez transformada numa espécie de zumbi.
Suicida agora era seu nome, e ela passou a viver entre nós no bosque. No início sentia medo, mas assimilou rápido o fato de que morreu para um mundo para nascer em outro.
Nada podíamos fazer para impedir que ela pulasse.
Se ela não podia nos ver, nós simplesmente não existíamos para ela, e sua negatividade nos repelia de tal forma que poderia até nos ferir gravemente.
Mas depois de morta, podíamos recebê-la em nosso mundo, e proporcionar a ela experiências para preencher o vazio de sua existência.

Experiências que nos fazem viver para sempre.



(Arcano Soturno)

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